372 - BENTO

Com apenas um 1,73m de altura, Manuel Bento, nos dias que correm, provavelmente, não seria uma escolha óbvia para a posição de guarda-redes. No entanto, o que não tinha em altura, sobejava em elasticidade, em colocação e, acima de tudo, possuía aquilo que a maior parte dos praticantes e dos adeptos da modalidade conhecem como “uma boa dose de loucura”. Esse arrojo levá-lo-ia para um patamar exibicional de excepção, nível que todos os que olhassem apenas ao seu físico haveriam de considerar como impensável. É certo que a sua carreira não foi só feita de coragem. Quem com ele trabalhou, sabe que o antigo guardião era um exemplo de luta, dedicação e esforço, características obtidas ainda nos tempos passados na Golegã, a sua terra natal, e enquanto exercia a profissão de pedreiro.
Depois dos primeiros passos no Riachense e no Goleganense, haveria de ser o Sporting o primeiro "grande" a estender-lhe a mão. Contudo, fruto do desentendimento com alguns dirigentes “leoninos”, a relação entre o atleta e o clube apenas duraria 3 meses, ao fim dos quais Bento regressaria a casa. De seguida, a oportunidade de pisar os principais palcos do futebol nacional surgiria vinda da Margem Sul do Rio Tejo. No FC Barreirense a partir de 1969/70, o jogador começaria a mostrar-se como um dos melhores na sua posição, tendo sido, na temporada de estreia, um dos responsáveis pelo brilhante 4º lugar na tabela classificativa do Campeonato Nacional e pela correspondente qualificação para as competições europeias. Todavia, o jogo a pô-lo definitivamente na rota do Benfica haveria de ser outro. Nesse encontro a 8 de Dezembro de 1970, em pleno Estádio da Luz seria disputada a partida que serviria de despedida para outro dos "magos" do futebol luso, o enorme Mário Coluna. Como um dos convidados, Bento faria uma exibição notável e o “namoro” com as "Águias" começaria nessa data, mas com a transferência a materializar-se apenas na época de 1972/73.
Ao chegar ao Benfica, apesar da experiência que os seus 24 anos poderiam revelar, a verdade é que Bento haveria de enfrentar a primeira grande dificuldade, isto é, destronar José Henrique. Porém, nem isso seria um factor de desmotivação e o guardião continuaria a trabalhar com afinco e naturalmente, ao fim de algumas temporadas, com a capacidade de abnegação como a principal bandeira, conseguiria impor-se como titular. Nesse sentido, não é demais referir que a sua vontade guerreira seria, muitas vezes, o combustível para que, fora e dentro de campo, tomasse a posição de um verdadeiro líder. Ficariam na memória tantas histórias, como por exemplo aquelas em que assumiria o papel de marcador de grandes penalidades - "(…) o Bento, certa vez (…), qualificou o Benfica. Sim, ele é que nos qualificou: 0-0 na Luz e 0-0 em Moscovo. Prolongamento, penáltis e o Bento defende o primeiro (…). O segundo (…) foi para fora. O terceiro (…) foi golo, mas aí já nós estávamos bem à vontade. E foi o Bento quem marcou o penálti que nos apurou para a ronda seguinte. Bola para um lado, guarda-redes para o outro"* - relembraria Toni a eliminatória de 1977/78 da Taça dos Clubes Campeões Europeus, frente ao Torpedo.
Outros episódios houveram um pouco mais extremos, é certo. Como aquele onde, num dos tantos “derbies” lisboetas, acabaria a desentender-se com o avançado do Sporting, e seu amigo pessoal, Manuel Fernandes, o qual recordaria o episódio da seguinte maneira – “Já na segunda parte, com o resultado em 1-1, o Bento saiu aos meus pés, e eu deixei o meu pé sem intenção, para ver se ele largava a bola, mas ele agarrou-a. Mal lhe toquei, quando muito rocei com a bota, porque não levava força para o magoar"**. Porém, o guardião dos encarnados responderia com alguma brusquidão à rispidez do lance e atingiria o adversário com o braço na cara – “Eu naturalmente atirei-me para o chão, pois sabia que ia beneficiar a minha equipa. Ele ainda me disse: és sempre a mesma merda”**.
Também no papel de líder, Bento viveria um dos momentos mais conturbados do futebol português, quando, já em pleno estágio para o Mundial de 1986, daria a cara pelas reivindicações do grupo de jogadores presentes no estágio de Saltillo. Aliás, para si, esse torneio não ficaria marcado apenas por esse caso. Infelizmente para o guardião, o certame realizado no México acabaria por ser o princípio do fim da sua carreira, pois, num dos treinos a seguir à vitória sobre a Inglaterra, numa brincadeira a meio de uma das ditas sessões, o guarda-redes, à altura o titular da selecção, fracturaria a perna. Afastado dos restantes encontros, o regresso a Lisboa ficaria marcado pelo esforço com que encararia à recuperação. Todavia, nunca mais voltaria a ser o mesmo, aquele que, com um jeito por vezes pouco ortodoxo, haveria de maravilhar Platini, no Euro 84, realizado em França - "Nunca vi ninguém defender tão bem durante um jogo"*.
Por todas estas e outras tantas histórias, pelos 20 anos em que esteve ao serviço do Benfica como jogador, pelos 16 títulos nacionais e presenças em 3 finais europeias, pelas 63 internacionalizações e, acima de tudo, pelo homem de enorme carácter, Bento será recordado como um dos melhores de sempre e lembrado como o eterno "Homem de Borracha".

*retirado de "101 cromos da bola" (Lua de Papel), Rui Miguel Tovar, Março de 2012
**retirado do artigo publicado a 12/12/2011, em www.dn.pt

2 comentários:

Rodrigo Capelo disse...

Artigo interessante. Há muitas história sobre este que foi um dos melhores guardiões que passaram pelas redes benfiquistas e nacionais, como a 'carrinha do peixe' ou o grupo do Barreiro': http://www.xtratime.org/forum/showpost.php?s=ede2de19629bd7398c6336171dfcd7f3&p=5058249&postcount=12

cromosemcaderneta@gmail.com disse...

Amigo Rodrigo Capelo

Muito obrigado pela sua contribuição para este blog. Já estive a ler o artigo do qual aqui nos deixou o link, e é bem engraçado. Aconselho vivamente todos a lê-lo.

Grande abraço